caio - procedimento de rotina

a partir da leitura de Caio Fernando Abreu, passei a olhar para a minha própria condição homossexual e a procurar nela uma consciência e uma poesia. Esse blog mostra todo esse processo de buscas e pesquisas.

terça-feira, 18 de maio de 2010

RELATORIO -

RELATÓRIO: CAIO – Procedimentos de Rotina.
Maio/2010
Um dia, lendo um dos livros de Caio Fernando Abreu (os dragões não conhecem o Paraíso) , tive a impressão que os contos ali colocados, eram parte da história do autor. Era impossível, pra mim, que alguém conseguisse tanta verossimilhança, sem um envolvimento real com cada uma daquelas histórias.
                Interessei-me mais ainda pelos contos e por outros livros do autor. A idéia de realidade passada a limpo, não fugia da minha cabeça. Entendi aos poucos o que ele dizia quando escrevia que a literatura era um modo de se salvar, de sobrevir à vida. Era, pra mim, como se escrevendo, revendo-se, ele poderia se entender mais, se desculpar, se justificar, mas sobretudo se perdoar. Era assim que, me parecia, a literatura o salvaria.
                Eu também achava que o amor e o sexo haviam me tomado os anos.
Também não podia compreender porque era tão difícil sobreviver à vida. Também para mim o amor ocupava a maior parte dos meus pensamentos. Assim tive a idéia de pesquisar a minha própria vida: amor, sexo, etc. na tentativa de salvar-me. Não sabia como.
                Enquanto nós da cia.ltda. realizávamos o projeto RECURSOS HUMANOS (2007/2008) estive guardando todo tipo de material das minhas próprias estórias sexuais: escrevendo contos, poemas, cartas ou fotografando situações onde se revelava essa coisa chamada amor. Muitas delas se perderam em “back ups”.
                Quando iniciamos o projeto REGISTRO GERAL vi a possibilidade de concretização desse processo.
                Mas para minha surpresa, eu não tinha a idéia de como transferir para a ação corporal cênica, tantos arquivos de textos e imagens. Contraditoriamente, tudo que existe nas coisas do sexo e do amor são extremamente físicas: a própria relação sexual, a sensação de abandono, os jogos de sedução e aproximação, a necessidade do outro corpo, enfim tudo ...
                Durante os primeiros encontros de REGISTRO GERAL, o processo Caio permanecia estagnado.
                Em janeiro graças a um aula dada por Maria das Dores Vaz, é que surgiram os primeiros fragmentos. Ela nos pediu que levássemos um objeto para a aula, um objeto que tivesse uma ligação com o processo que desenvolvíamos. Na tentativa de ser o mais íntegro possível com as minhas idéias, levei para a aula uma cueca que eu roubara do cara que eu tinha relações. É estranho não poder agora chamá-lo de namorado, nem amante, nem nada: o cara que eu tinha relações.
                No dia dessa aula eu vinha de moto para o nosso encontro com a cueca entre a minhas coisas dentro da bolsa. Tinha uma ansiedade tão grande nesse trajeto, que o movimento complexo do trânsito, me bloqueando, me excitava a pensar palavrões, que aos poucos foram se exteriorizando, e quando me vi, já estava a xingar e a dizer impropérios aos carros e motoristas no meu caminho. A minha consciência se acendeu no momento em que me peguei gritando para o motorista ao lado: viado!!
                Ainda na moto, em direção ao ensaio, tive a idéia de montar uma cena: enquanto eu me despia, eu falaria palavrões, sem agressividade, dirigidos a mim mesmo, como senti aquele “viado”. Entendi ali, ainda sobre rodas, que qualquer ação do meu corpo se dirigia a si mesmo, como um modo de se estabilizar, se aprender, sei lá. A memória dos estudos de Merleu-Ponty. Que diferença fazia pro outro quando eu o xingava no meio do trânsito? Mas pra mim sim, aumentava ainda mais minha ira, minha distância de mim mesmo, da tolerância, da calma, e da paz. Resolvi realizar essa ação como um antídoto a inconsciência. Assim surgiu a primeira cena.
                A aula da Mary resultou na segunda cena: durante seu processo de aula ela pediu para realizar uma ação com o objeto trazido para a aula. Eu, que já havia me separado do “cara com quem tinha relações” a algum tempo, tinha a necessidade física dele, a cada segundo da minha vida. Bem, por razões que não carecem muita explicação terminei por tentar colocar a cueca toda dentro da boca, e ir soltando ela bem devagar.
                Havia ainda uma cena há muito tempo montada na minha cabeça, mas que nunca tentara realizar, que vinha de uma outra coisa da minha vida. Quando eu era criança eu chupava dedo, o que causava grande indignação por parte das outras pessoas. O prazer que aquele ato me dava, no entanto, me impediam de abandoná-lo por completo, reservando os momentos solitários para fazê-lo. As vezes eu procurava lugares onde eu pudesse fazer isso escondido, pra evitar os desafetos dos outros. Tinha na época um pequeno armário num quarto de despensa na casa da minha mãe, que eu tirava tudo que tinha dentro, me colocava ali, e por vezes até dormia na minha tranqüilidade de sugador. Essa coisa de entrar no armário, mais tarde também me chamou a atenção, dada essa relação que se faz com a tal “saída do armário”.
                Desenvolvi essas cenas, mostramos no primeiro ensaio público. A apreciação das pessoas foi bastante positiva. Gostei especialmente do que disse a Mana. A Mana é uma grande amiga, mas também programadora do SESC – CINEMA. Grande leitora de Caio Fernando Abreu, ela comentou que achava muito inteligente a escolhas das cenas, a forma em que elas aconteciam. Exatamente como eu sentia a obra do próprio Caio, eu considero uma obra bastante inteligente, não só por ser extremamente poética, mas também por poder proporcionar ao próprio autor uma descoberta de si mesmo.
                Até o próximo ensaio público a minha obra não teve nenhum grande incremento. A criatividade estagnou novamente. Segui reproduzindo essa cena nos ensaios solitários, e nesse ensaio público decidi apresentá-la novamente, nem sei por quê. Outros participantes, outras reações, mas um encorajamento pra seguir com a montagem. O excesso de fragmentação do trabalho esteve me incomodando por uns tempos, mas alguém nesse ensaio, via isso como contos de um mesmo livro. Resolvi assumir esses cortes entre uma cena e outra, mesmo que as cenas as  vezes não durassem nem cinco minutos.
                O terceiro ensaio público, e eu ainda seguia sem nenhuma novidade no meu processo. Não apresentei. Foi bom, poder assistir aos outros trabalhos. Nesse tempo estive em São Paulo, para a apresentação de “DESPACHO”, performance solo, no V VISÕES URBANAS – Festival Internacional de Dança em Paisagens Urbanas. Eu estava muito feliz com a receptividade do trabalho, e andei fazendo uns investimentos também no processo de DESPACHO, que também me encanta.
                Considero DESPACHO também um processo dentro de REGISTRO GERAL, e ainda dentro de CAIO. Porisso vou tomar também um tempo descrevendo ele.
                DESPACHO é para mim o que o próprio nome sugere. Por razões que a própria razão desconhece, fui criando dentro de meu corpo um distanciamento em relação às pessoas. Preferia me achar “um pouco melhor” que todo mundo, a tentar tolerar as pessoas como elas são. Isso me afastava, e ainda a fasta, devo dizer, de muitas relações. Em despacho, a fim de quebrar com esse procedimento físico-emocional, decidi dançar para os transeunte. Foi aí que me coloquei no espaço público, para dançar para quem quer tivesse interessado nessa dança. Esse processo está sendo levado junto com Caio. Num certo sentido eles se completam.
                Já no sexto mês do processo de REGISTRO GERAL, fui mais uma vez rever os escritos arquivados de CAIO. A ocasião me fez retomar ainda uma vez mais os escritos do próprio autor. A ferida do amor reaberta me faz ainda retomar os escritos e me vi escrevendo novamente as cartas que tempos atrás escrevi para o “cara com quem tinha relações”. Na verdade eu continuei as cartas já começada. Enquanto escrevia, por acidente de uma colocação do abajur que acompanha esses momentos, vi a minha própria imagem refletida na tela, por trás dos escritos. Essa imagem me tocou. Acentuou o caráter auto devorador da ação. Decidi colocá-la em cena. E ainda a pensar a obra como um livro de contos, como tinha sido sugerido num ensaio, e cada segmento seria um capítulo. O primeiro capitulo: “sem nomes”. O segundo: “dentro dele, dentro dele”; o terceiro: “ainda”, o quarto: “procedimento de rotina I”
                (continua)
               
               

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